Por Marcos Ommati
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) foi criada pela Resolução nº 1542 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 30 de abril de 2004. Desde então, a convite da ONU, o Brasil contribui com tropas e policiais para a Missão. Desde o primeiro Force Commander , General Augusto Heleno até o atual General de Divisão José Luiz Jaborandy Júnior, todos os comandantes da MINUSTAH foram oficiais generais brasileiros.
A MINUSTAH está no Haiti a pedido do Governo local e lá se mantém por interesse haitiano. A Missão busca contribuir para a segurança do povo local e ajudar a manter a ordem democrática. Desde a chegada do contingente multinacional, houve duas eleições presidenciais, e a fase crítica de emergência humanitária pós-terremoto de 2010 foi superada.
Do ponto de vista da garantia da segurança, a Missão tem sido bem-sucedida, especialmente contra gangues que antes agiam livremente na capital, Porto Príncipe, sobretudo nas zonas de Belair, Cité Soleil e Cité Militaire, segundo dados da ONU e do próprio governo do Haiti.
Nascido em 1958, o Gen Div Jaborandy é formado pela Escola de Comando e Estado-Maior do Brasil e pelo Instituto de Estudos Superiores Militares de Portugal. Já serviu como assessor parlamentar do Gabinete do Comandante do Exército, além de ter sido observador militar do Grupo de Observação das Nações Unidas na América Central (ONUCA), em 1991, e da Missão de Observação das Nações Unidas em El Salvador (ONUSAL), em 1992.
O Gen Div Jaborandy gentilmente tomou tempo de sua corrida agenda como Force Commander para responder às perguntas a seguir feitas por Diálogo sobre a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti.
O senhor acredita que a MINUSTAH funcione como um conceito de defesa coletiva sob a tutela das Nações Unidas?
Gen Div Jaborandy : A MINUSTAH, como previsto na Carta das Nações Unidas, está presente para realizar um esforço conjunto com a comunidade internacional para ajudar o Haiti, mantendo um ambiente seguro e estável no âmbito de uma missão de paz.
Como analisa a responsabilidade de liderar mais de 5.000 mil homens de 21 países que compõem a MINUSTAH?
Gen Div Jaborandy: É uma grande responsabilidade comandar tropas de diferentes nacionalidades, mas independentemente das diferenças culturais e das distintas formas de emprego entre as forças armadas aqui representadas, estamos todos irmanados sob uma única bandeira e focados em um objetivo comum. Na MINUSTAH há um dos melhores ambientes de trabalho que já vivenciei em meus quase 40 anos de serviço. Costumo dizer, ao me referir a este ambiente de integração, que somos muitas bandeiras mas um só grupo. Somos uma só famlília e, portanto, é um privilégio e uma honra liderar esses homens e mulheres que integram o componente militar da MINUSTAH.
Como funciona a interoperabilidade entre militares de tantos países diferentes?
Gen Div Jaborandy: Observamos que, apesar da diversidade cultural, das diferenças doutrinárias de emprego de cada força armada presente e de seus níveis de adestramentos, o “padrão Nações Unidas” faz com que haja um nivelamento, um padrão único de conduta. Seguimos diversos documentos que regulam o emprego da tropa, tais como os conceitos de operações e as regras de engajamento.
Possuímos no componente militar uma célula de treinamento, responsável por conduzir instruções específicas a fim de padronizar os procedimentos necessários ao cumprimento das tarefas que nos são atribuídas. É necessário destacar, elogiar e reconhecer o alto nível de preparação com que as tropas se apresentam aqui na MINUSTAH. Essa preparação é realizada em seus próprios países antes de embarcarem para o Haiti.
Isso facilita muito o entendimento da missão pelo Soldado da Paz, tanto de forma individual como conjunta, e facilita a adaptação às especificidades das operação desencadeadas no contexto do Mandato da MINUSTAH. Outro aspecto que facilita muito a integração entre as forças de diferentes países é a vontade de cumprir uma missão altamente relevante. Isso faz com que seus militares entendam rapidamente as questões relacionadas à heterogeneidade e trabalhem de forma harmônica, favorecendo em muito a interoperabidade.
E com relação à Polícia Nacional do Haiti?
Gen Div Jaborandy: A preparação e a integração da PNH (Polícia Nacional do Haiti) são incumbências do Componente Policial da MINUSTAH. Não compete ao Componente Militar da Missão. A UNPOL (Polícia das Nações Unidas), com seus diversos ramos, lida diuturnamente com a PNH. Temos observado que a polícia haitiana está evoluindo.
Talvez não na velocidade ideal, mas os passos que vêm sendo dados são positivos. Podemos observar a profissionalização, alguma melhoria dos equipamentos, o desenvolvimento doutrinário e, acima de tudo, a formação, por intermédio da Academia Nacional de Polícia. Inicialmente, a força militar da MINUSTAH trabalhava muito mais de forma isolada; hoje damos prioridade para as operações conjuntas e temos apoioado a PNH sempre que ela nos solicita.
Qual é o seu principal desafio como Force Commander ?
Gen Div Jaborandy: Após quase quatro décadas de serviço militar, me sinto um soldado altamente recompensado por desempenhar essa importante missão como Force Commander . O principal desafio é manter as forças sob meu comando no cumprimento integral do mandato que nos foi conferido pelo Conselho de Segurança da ONU. Devo dizer que tal desafio tem sido fácil de cumprir, dado o estímulo, o entusiasmo e o comprometimento de todos aqueles que têm a honra de representar seus países, trabalhando pelo Haiti por meio das Nações Unidas.
O senhor foi observador militar em duas missões da ONU na América Central nos anos 1990. Em que isso o ajudou na sua função atual?
Gen Div Jaborandy: Nos anos 90, especificamente em 91 e 92, tive a oportunidade de participar de duas missões de Paz. A ONUCA (United Nations Observer Group in Central America) e a ONUSAL (United Nations Observer Group in El Salvador). Essas missões foram importantes porque me deram a oportunidade de integrar e começar a entender o “Sistema Nações Unidas”. Naquela época eu era um jovem capitão, mas a experiência que adquiri tem facilitado muito a minha atuação como Force Commander .
Em que mudou o mandato da MINUSTAH nestes dez anos e o que se espera para o futuro próximo?
Gen Div Jaborandy: O Mandato da MINUSTAH, em relação ao Componente Militar, sofreu alterações em função das situações vivenciadas pelo país. No início da missão, o principal objetivo era o estabelecimento e a manutenção da segurança, tendo que assumir uma postura mais firme.
O componente militar, em seus primeiros momentos aqui, teve de agir de forma isolada, ou seja, sem contar com a realização de operações conjuntas com a UNPOL ou com a PNH. Foi um momento no qual o foco eram as ações voltadas para o restabelecimento de um ambiente seguro. À medida que os níveis de segurança foram aumentando, aquela postura inicial foi se adaptando às novas situações.
Em 2010, com o terremoto, a postura do Componente Militar teve que se adaptar a uma nova situação. Passou, então, a priorizar as ações humanitárias, a reconstrução do país e a melhoria das condições de vida da população. Isso tudo sem esquecer, obviamente, a manutenção da segurança alcançada.
Atuamente, o componente militar deixou de ter um papel protagonista, passando a assumir uma postura coadjuvante, ou seja, de apoio às autoridades haitianas nas ações voltadas para a segurança, para o desenvolvimento da infraestrutuira, para as ações humanitárias e para a melhoria das condições de vida de sua população.
Num futuro próximo, as Nações Unidas, por meio da Resolução 2180 do Conselho de Segurança, de outubro de 2014, alterará novamente a nossa postura. Essa Resolução, que passará por uma revisão no próximo mês de março, determina a redução do quantitativo de militares presentes. Do atual efetivo autorizado de 5.021 homens e mulheres, passaremos para um efetivo de 2.370.
Isso reduzirá muito a nossa presença e, consequentemente, uma nova postura operacional será adotada. Atuaremos muito mais como Força de Reação Estratégica (rápida), aplicando o que chamamos de “fórmula 1-2-3”, ou seja: a primeira resposta sendo dada pela PNH; a segunda resposta pela PNH apoioada pela UNPOL; e a terceira e última resposta pelo emprego da tropa militar.
Estaremos reunidos em dois hubs , um em Porto Príncipe e outro em Cabo Haitiano (Cap-Haitien), em condições de sermos empregados caso a situação se torne crítica ao ponto de a PNH, isoldadamente ou apoioada pela UNPOL, não ser capaz de resolvê-la.
Considera o trabalho atual da MINUSTAH mais ou menos sensível que antes?
Gen Div Jaborandy: Eu considero muito importante o trabalho desenvolvido pela MINUSTAH ao longo de sua existência. Nossa ação foi e continua sendo muito sensível porque cumprimos legalmente um Mandato da ONU.
Hoje, com a retomanda do Estado de Direito e o restabelcimento da legalidade no país, estamos preocupados em sempre manter a estrita legitimidade no emprego das tropas do Componente Militar. Estamos sempre atentos e constantemente instruindo nossas tropas em como responder a eventuais demandas da PNH e da UNPOL.
Veja bem, não quero dizer que outrora o trabalho era mais ou menos sensível, mais ou menos legal, mais ou menos importante do que agora, mas que os enfoques e as concepções das operações mudaram e, com eles, os riscos intrínsecos a cada fase também se alteraram, não nos sendo possível quantificar qual deles seria o mais sensível.
O trabalho da MINUSTAH, em qualquer período, sempre teve momentos de maior ou menor sensibilidade, mas isso não foi e não tem sido nossa preocupação. Posso assegurar que sempre nos mantivemos focados no cumrprimento do Mandato estabelecido, sempre dentro da legalidade e procurando atuar como elemento de integração da Nação haitiana.
O que é, afinal, a “estabilidade” presente na definição da MINUSTAH?
Gen Div Jaborandy: No meu ponto de vista, não se pode confundir os conceitros de segurança e de establidade, embora sejam eles interdependentes. A segurança é a base sólida sobre a qual se constrói a estabilidade.
Pelos índices absolutos de violência e criminalidade, o Haiti pode ser considerado um país seguro. Entendo que o trabalho realizado pela MINUSTAH, em conjunto com as instituições nacionais e contando com a vontade do povo haitiano, foi capaz de restabelecer e manter a segurança em níveis considerados compatíveis.
Por outro lado, para definir estabilidade temos que nos elevar ao nível estratégio, político e institucional. Sabemos que o país hoje enfrenta problemas decorrentes de alguns impasses políticos que dificultam seus avanços no campo democrático.
Assim, sob o meu ponto de vista, a situação hoje no Haiti demonstra que o país goza de aceitáveis níveis de segurança, apioado pelas ações da ONU, mas enfrenta problemas no campo da estabilidade institucional e política.
Mas sou otimista e acredito que as instiutições nacionais, o governo e o povo do Haiti saberão encontrar o caminho da estabilidade pelas vias democráticas, em que o diálogo e o consenso prevalecerão.
No Brasil, como em outros países, há quem critique o trabalho das forças armadas participando em missões de paz por entenderem que suas nações também precisam destes militares. O que o senhor tem a dizer a respeito?
Gen Div Jaborandy: O incremento da importância do Brasil no cenário internacional faz com que o país tenha que assumir novas responsabilidades. O Brasil é uma das maiores economias do mundo e vem conquistando espaço global. A projeção de um país não se faz somente fortalecendo o campo econômico, mas também o político, o tecnológico, o militar, o psicossocial. E foi por isso que o Brasil destacou uma pequena parcela de suas Forças Armadas para o Haiti.
Devemos entender que esse trabalho está trazendo benefícios para o nosso país. Por meio da participação na MINUSTAH, o Brasil ganha respeito e mostra que não está se isolando da comunidade internacional. Mostra que trabalha pela paz mundial e que, apesar de estar ainda em desenvolvimento e ter seus próprios problemass, não deixa de estender a mão aos povos irmãos necessitados, elevando suas credenciais como país confiável e nação pacífica.
Considero que a nossa participação na MINUSTAH possibilitou ao Brasil mostrar sua capacidade de projetar forças, utilizando tecnologia, infraestrutura e logística próprias, além de demonstrar a capacidade de planejar e protagonizar ações em um contexto multinacional. Também favoreceu o adestramento das tropas e a operação de forma equilibrada em um ambiente extremamente complexo e sensível.
Vale destacar que o país tem podido desenvolver, testar e compartilhar doutrinas e modernos equipamentos militares. Muito importante, também, é a motivação do pessoal militar com o cumprimento de uma missão da ONU em apoio a um povo que necessita de solidariedade. Os militares brasileiros da MINUSTAH retornam ao nosso país melhores, mais solidários e entendem o motivo pelo qual desejamos e buscamos de forma concreta a paz mundial. Portanto, em minha avaliação, a decisão brasileira de participar desta missão foi acertada.
O senhor se considera uma pessoa melhor por haver participado desta missão de pacificação?
Gen Div Jaborandy: Todos que têm a oportunidade de participar de uma missão de paz podem ver a gratidão nos olhos e no coração daqueles que nos recebem para uma ajuda temporária. Elevam o espírito e se realizam como militares e como seres humanos. Tenho grande orgulho da maneira com que os contingentes militares conseguem interagir com a população do Haiti. Aqui nossos militares têm conseguido conciliar as coisas operacionais com as coisas do coração; aqui nós somos os soldados da paz, da solidariedade, os profissionais que entendem a missão como uma forma de ajudar o povo do Haiti; aqui evoluímos como homens e mulheres, alçando nossos corações e mentes a um novo patamar.
Algo mais que deseja acrescentar?
Gen Div Jaborandy: Gostaria de agradecer a oportunidade deste contato. Dizer que somos felizes por estarmos no Haiti e que os desafios não nos amedrontam, ao contrário, nos motivam. Estamos preparados para cumprir a missão que aceitamos e entendemos como deve ser cumprida. Temos muito orgulho de ostentar as nossas bandeiras e representar os nossos povos na ajuda a este país. Não há tarefa mais nobre do que a missão da paz.
É importante enfatizar que alqueles que pensam que as forças armadas existem para fazer a guerra estão equivocados. Elas existem para garantir a paz. Essa é a razão de ser das forças armadas. E garantir a paz, a solidariedade, a amizade entre os povos e a irmandade entre as nações é exatamente o que nós praticamos aqui na MINUSTAH.
Estaremos sempre prontos a cumprir essa relevante missão, caso sejamos novamente chamandos pelos nossos países e pela comunidade internacional no futuro, ainda que tenhamos esperança de que isso não se faça necessário. O ideal seria que, de uma vez por todas, os povos fossem capazes de se irmanarem, de se compreenderem, interna e externamente, e de construírem a paz que todas as nações necessitam para serem verdadeiramente felizes. Envio daqui, do Haiti, 5.021 abraços fraternos a todos aqueles que acreditam e que, de alguma maneira, trabalham pela paz.