Com quase meio século de serviço no Exército, o General Carlos Alberto dos Santos Cruz é atualmente o comandante das tropas da ONU na República Democrática do Congo, onde anos de guerra e confrontos entre grupos armados deixaram mais de 5 milhões de mortos, o General não perde o foco da missão e afirma, “O mais importante são as pessoas.”
O militar comandou também as tropas da Missão de Estabilização no Haiti (Minustah) antes de seguir para o país africano, que ele descreve como um local de “beleza e riquezas naturais impressionantes.” Em entrevista ao Correio Braziliense, ele contou como ajudou a combater grupos armados cruéis.
Acostumado com a rigidez e a disciplina militares, aos 62 anos, o General Santos Cruz não descuida de sua saúde e corre cerca de 10km, dia sim dia não, para poder trabalhar “de manhã até de noite”. Durante os recessos que passa em Brasília, onde moram sua mulher, os três filhos e um neto, os treinos continuam no Parque da Cidade ou nas superquadras.
Conhecido por marchar à frente do batalhão e por ter ampla experiência em guerra na selva, adquirida na Amazônia, Santos Cruz diz não ter medo de ameaças e responde a intimidações com o “mesmo nível de perigo”.
O general recebeu a equipe do Correio Braziliense no apartamento da família, na Asa Norte, quando passava as férias no Brasil. Próximo de completar o segundo ano na liderança do braço militar da missão, batizada de Monusco, Santos Cruz se mostra aberto a uma renovação de seu mandato, mas diz ter planos “de garantia de satisfação futura” no Brasil. Comedido, ele evita especular sobre o assunto, mas o deficit brasileiro perante agências da ONU pode dificultar a permanência dele no comando.
Sem esconder o orgulho de desempenhar um papel importante na reestruturação da RDC, o general rejeita qualquer tentativa de descrevê-lo como um herói. Bem-humorado, conta sobre um churrasco perdido devido a um ataque do M23, grupo rebelde derrotado pelas tropas da ONU e do Exército local, em 2013. Fala sobre a paixão pelos cavalos, sobre o árduo trabalho na África e a vontade de ver o crescimento econômico da RDC beneficiar as classes mais pobres.
O senhor está na República Democrática do Congo há quase dois anos. Como é a sua rotina lá?
Uma missão de paz como a do Congo, por ter uma dimensão muito grande, apresenta problemas complexos, que envolvem vários atores e países. A rotina é muito trabalhosa, realmente não lhe dá chances de desligar. Lá não tem fim de semana, todo dia é segunda-feira. Então, a gente descansa quando tem folga, que, no meu caso, é de dois em dois meses.
Quais são os planos da ONU na região?
Todas as missões de paz têm um mandato do Conselho de Segurança, que as autoriza e detalha suas tarefas e objetivos. No nosso caso, é a neutralização dos grupos armados. Existe um grande número de facções armadas na RDC, certamente mais de 30. Também são nossas tarefas o monitoramento de armamentos e o apoio à autoridade estatal. O Congo é um país muito grande e, em áreas mais remotas, onde esses grupos armados atuam, você não tem a presença do Estado.
Em dezembro passado, a ONU e o Exército do país lançaram uma operação em Beni, onde mais de 250 civis foram mortos. Como é o trabalho militar na região?
A situação em Beni é extremamente difícil, pois há um grupo armado chamado ADF (Forças Democráticas Aliadas) na região. Ele foi formado há 20 anos, com uma agenda política contra o governo de Uganda. É um grupo islâmico que cruzou a fronteira quando caiu o governo de Idi Amin (ex-ditador de Uganda) e passou a agir de dentro do Congo contra as autoridades de nações vizinhas.
Com o passar dos anos, foi perdendo a força política e passou a explorar mais as riquezas locais — a RDC é de uma riqueza fantástica. Os rebeldes começaram a se entranhar na sociedade, a controlar o contrabando de madeira, de ouro, de coltan e de outros minerais. Nos últimos dois ou três anos, sequestraram quase 2 mil pessoas, e poucos reféns foram libertados.
O grupo se alojou em uma área de selva entre a fronteira de Beni e Uganda, que eu conheço como a palma da minha mão. Em 16 de janeiro de 2014, foi iniciada uma operação contra eles. O Exército do Congo perdeu muita gente, mas eles também, e a estrutura do grupo foi quebrada. Em 3 de outubro, começou um massacre de civis na região de Beni e de Mbau.
Teve dia que mataram 29; em outro, 49 — sempre usando machados e facões. Uma violência absurda. Acredita-se que a ADF seja responsável, mas, por enquanto, não tem reivindicação nenhuma. E ainda é pouco nebulosa a finalidade política disso, mas é obvio que se trata de uma ação que tenta desacreditar o governo e a ONU.
Esses grupos sobrevivem de contrabando. Falta uma resposta mais contundente da comunidade internacional?
Essa não é minha primeira experiência em missão de paz e eu vejo que é muito fácil colocar a culpa na comunidade internacional. Ela pode ser mais eficiente, sim, mas os governos locais também precisam ser mais eficazes. Há projetos de certificação para minerais, como o que já existe para madeira, mas veja a quantidade de contrabando de madeira que existe no mundo.
A RDC é um país muito grande e tem, certamente, mais de mil minas, que se concentram principalmente na parte leste. Elas estão espalhadas em uma área sem estradas, sem comunicação, em um espaço físico imenso. Há atores internacionais que vivem da clandestinidade, como grandes contrabandistas e traficantes de armas.
Você vê que todos esses grupos armados têm acesso a armamento e munição e eu lido com isso todos os dias. Só que a gente não tem um mapa de quem está comercializando. São armamentos e munições de várias origens. Como isso não tem controle? O ideal seria haver mais coordenação.
Que tipos de trabalho e investimento têm sido feitos em infraestrutura, educação e saúde?
O governo do Congo tem a Constituição em funcionamento. No entanto, entre o que está previsto na lei e o benefício real que chega à população, existe uma distância muito grande. A maior parte do país ainda é muito desassistida.
O senhor percebe alguma melhoria nesses quase dois anos?
Você percebe em Kinshasa, na capital, e em Goma, onde há grande quantidade de construções e um aumento visível no do numero de carros. Mas, para mim, é preciso enxergar as pessoas mais vulneráveis recebendo benefícios. Isso ocorre aos poucos. No ano passado, o país cresceu em torno de 8,5%. O meu referencial está nas classes mais pobres. Ainda está bastante longe (do ideal).
O senhor faz um paralelo com relação ao que viu no Haiti?
Há um paralelo, principalmente em relação ao sofrimento humano, algo que sensibiliza você o tempo todo. Ver, por exemplo, como as pessoas conseguem sobreviver em um ambiente tão hostil de prestação e de disponibilidade de serviços. O Haiti é um país pequeno, próximo ao Brasil, aos Estados Unidos e no meio do Caribe. Já o Congo, no coração da África, tem quase 100 vezes o tamanho do Haiti. O sofrimento humano é o mesmo, o que muda é a dimensão, o número de pessoas.
O senhor participou da derrota do M23. Como foi o momento em que vocês se deram conta da vitória?
Foi por volta das 18h de 4 de novembro do ano retrasado. Quando eu cheguei no país, em junho de 2013, o M23 havia se retirado da cidade de Goma após forte pressão internacional. Eles estavam em frente às tropas da RDC e da ONU, na periferia da cidade. Em 14 de julho, os rebeldes atacaram o Exército. Era um domingo, por volta das 13h30, e eu estava almoçando.
O batalhão uruguaio tinha me convidado para um churrasco e eu levantei da mesa sem comer por causa do ataque. Em seguida, houve uma batalha sem a participação da ONU, na qual o Exército do Congo teve sucesso, empurrando o M23 para trás. Algumas semanas depois, houve novo ataque, ao qual as tropas do Congo responderam saindo de dentro de Goma, por trás das posições da ONU.
Então, o M23 atirou dentro da cidade. Não me lembro do número exato, mas morreram em torno de 15 pessoas, outras 40 ou 50 ficaram feridas. Foi quando entramos no combate, em apoio às forças do Congo.
Conseguimos empurrar o M23 para longe de Goma, fazendo com que não mais atingisse a área urbana. Eles se estabeleceram a cerca de 20km, em uma região próxima às cidades de Kiwanja e Rutshuru, as quais, juntas, têm mais ou menos 100 mil habitantes. Lá tivemos outra batalha e, perto de 26 de outubro, eles recuaram na direção de Uganda, para perto de Bunagana.
Ali os rebeldes estabeleceram uma posição defensiva muito forte. Depois de alguns dias de combate, em 4 de novembro, eles atiraram em Bunagana e vários civis morreram. Quando fizeram isso, dei ordem para a ONU atacar, mandei helicópteros destruírem o máximo possível as posições do M23, para que não continuassem atirando em área urbana.
Foi um ataque muito preciso e de muito sucesso. O dia estava nublado, então tivemos que esperar até o fim da tarde, quando abriu o tempo. No começo da noite, fui informado de que haviam destruído os depósitos de munição e que os rebeldes tinham fugido.
Essas pessoas foram anistiadas e começam a ser reintegradas?
O Congo aprovou uma lei de anistia e começou, em meados de dezembro (2014), a receber a primeira leva de anistiados do M23. É um processo muito tumultuado, muita gente que estava lutando e aguarda para voltar não é congolesa e não tem identificação. A reintegração à sociedade exige praticamente uma reeducação.
É preciso muito dinheiro para preparar a pessoa, às vezes até profissionalmente, para que ela não volte para o grupo armado, para que tenha uma atividade econômica. Existe esse tipo de programa, mas calcula-se um custo próximo a US$ 100 milhões.
O governo não teme que eles voltem a se organizar em grupos armados?
É um risco; mas a gente vive de risco, não tem nada garantido. Em 2012, uma organização dos EUA lançou campanha para capturar Joseph Kony, líder do Exército de Resistência do Senhor (LRA).
Seus homens participam dos esforços para encontrá-lo?
A ONU participa, sim. O líder do LRA é ugandense e um dos criminosos mais procurados do mundo. Assim como ele, existem outros na região. São criminosos do mesmo tipo e colocam nomes maravilhosos em seus grupos, como democracia, liberdade, Deus. Na verdade, são bárbaros. O LRA e o Kony ficaram famosos com a campanha e se tornaram um problema de mídia internacional.
Isso teve consequência política grande. Foi criada uma força-tarefa regional com tropas de Uganda, Sudão do Sul, República Centro Africana e República Democrática do Congo, a área de atuação do Kony. Ela tem previsão de 4 mil homens e conta com muitos recursos, helicópteros, aviões, forças especiais e apoio direto dos EUA.
Acredita-se que o Kony continue na região, às vezes aparecem acusações de que governos locais fornecem ajuda a ele, mas o LRA se espalhou e não é mais um dos principais grupos. Ele tem atuação semelhante ao banditismo, circulando e atuando em pequenos bandos, assaltando pessoas nas estradas e em pequenas vilas. Eles também entram no parque nacional e matam os elefantes para exportar o marfim, porque há um comércio ilegal que alimenta isso.
O senhor disse que não se sente um herói. Que sensação o senhor tem na RDC?
De frustração. Eu não sou herói, sou um sujeito normal; como eu, tem uma quantidade imensa de militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que podem exercer a mesma função. Eu sou privilegiado por ter sido escolhido. Nesse tipo de ambiente, o resultado das operações não é para você, mas, sim, para as pessoas que você tenta proteger.
Por exemplo, em um vilarejo viviam 4 mil pessoas, e um grupo armado dominava o lugar. Nós expulsamos esse grupo de lá e, hoje, tem 30 mil pessoas no local. Isso significa que 26 mil voltaram para casa. Em Goma, a vida mudou completamente depois que o M23 saiu. Toda a área produtiva em volta começou a levar os produtos para a cidade. Então, você vê que a vida muda e se motiva. E é preciso estar motivado, porque você larga uma vida extremamente confortável.
Quais são seus planos?
Meu plano é trabalhar pesado para derrotar outro grupo armado complexo, o FDLR (Força Democrática para a Libertação de Ruanda). Meu contrato com a ONU termina no fim de maio, quando completo dois anos e não sei o que vai ocorrer. Mas eu tenho planos de garantia para satisfação futura. Eu gosto muito de cavalos e se eu não tiver andamento profissional, vou treinar cavalos. O que tenho garantido é minha satisfação com a família e com os cavalos. Do que não depende de mim, não faço previsão.
FONTE : Correio Braziliense, Via EBlog