São 70 quilos de arroz, 70 de feijão e 200 de carne. A preparação para o almoço de mais de 1 mil militares começa cedo. Às 3h30 da manhã parte da equipe chega para preparar o café da manhã do Batalhão de Infantaria de Força de Paz (Brabat), enquanto outros começam a fazer o almoço dos estrangeiros que compõem a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti).
A tarefa faz parte de uma manhã comum no Campo Charlie – maior instalação militar da ONU no mundo – que abriga o Brabat. No restaurante conhecido como Rancho comem 1.200 militares, sendo 888 do Exército Brasileiro, 244 da Marinha, 34 da Força Aérea Brasileira, 31 das Forças Armadas do Paraguai, 2 do Exército canadense e 1 da Bolívia ou do Peru, que se revezam a cada seis meses, quando o contingente é trocado.
No refeitório, que tem capacidade para acomodar 250 pessoas sentadas, há café da manhã, almoço, jantar e ceia. Segundo o chef Francisco Pinheiro, tudo servido no batalhão é fornecido pela própria ONU, que consegue os alimentos à base de licitação. Os produtos vêm de diferentes partes do mundo. Enquanto o arroz costuma ser do Cazaquistão, o feijão é colhido na China ou no Paquistão, enquanto a carne é produzida na Austrália. “Nada vem do Brasil. São alimentos diferentes dos quais estamos acostumados a cozinhar”, explica. “O arroz, por exemplo, tem muito mais amido. Se desgrudamos o olho dele por 1 minuto já gruda tudo”.
Em noites especiais, quando há massa e pizza, são ao menos 90 quilos de macarrão. Guloseimas como chocolate e fritura, no entanto, estão vetados. “Muitos militares aqui vivem um cotidiano de bastante ansiedade, e não queremos que descontem na comida. Aqui, a alimentação tem um peso maior do que numa situação normal”, conta Pinheiro.
No Campo Charlie, cuja área totaliza 513.500 metros quadrados no bairro de Tabarre em Porto Príncipe, ficam também os alojamentos de todos os militares da missão da ONU, além de uma pista de corrida, campo de futebol, quadra de tênis, piscina. Há ainda uma academia de ginástica, mesas de pebolim e sinuca. Os militares vivem ali em regime de confinamento, saindo da base apenas para operações pelas ruas da capital ou outras cidades do país.
O único aspecto que marca a virada de semana ou o suposto dia de folga é o jantar de sábado à noite fora das dependências do Rancho. No bar Marabá, batizado em homenagem à cidade onde foi treinado o atual contingente, o cardápio é bem menos balanceado aos finais de semana, com arroz carreteiro ou estrogonofe, servidos em pratos e talheres descartáveis. Acompanham a dieta do sábado, quando o refeitório principal é dedetizado, refrigerante e sorvete – açúcares incomuns no dia a dia à base de suco e frutas. Axé e forró ao fundo dão o tom descontraído entre os militares. “Nem sempre tem esse som, não. Acho que o povo tá animado por causa do jogo do Brasil de ontem”, observou a capitã do Exército Cacilda Leal, um dia depois de o Brasil derrotar a Colômbia pelas quartas de final da Copa do Mundo.
O futebol mais longo no fim de tarde também faz lembrar que é sábado, assim como a feira de artesanatos sob segurança dos fuzileiros navais na entrada do campo – com o porém de o evento ser aberto para consumidores estrangeiros, mas não para haitianos.
O Brasil é o maior contribuinte da missão, a qual chefia desde junho de 2004. Desde então, 20 contingentes de tropas, totalizando mais de 20 mil militares brasileiros, já passaram pelo Haiti. Além do Brabat, a parte brasileira da missão mantém 177 engenheiros da Companhia de Engenharia da Força de Paz (Braengcoy), responsáveis pela mobilidade das tropas e pelo mapeamento para obras de infraestrutura.
Dentre as principais atribuições do batalhão estão a escolta de comboio e segurança de autoridades, blitzen, operações conjuntas com a Política Nacional Haitiana (PNH) e a Polícia da ONU (UNPOL) e, principalmente, patrulhas a pé e com blindados em 32 dos 36 quilômetros quadrados de Porto Príncipe. Na capital, além do Brabat na Base General Bacelar, o efetivo brasileiro é responsável pela base de Cité Soleil, a base do Forte Nacional, o Ponto Forte 09, em Cité Militaire, e a base do Porto.
O principal propósito da missão, que já custou ao Brasil 2,11 bilhões de reais (sendo 741 milhões de reais reembolsados pela ONU) era projetar a PNH como a principal força de segurança, assessorados pela UNPOL e pelo componente militar da missão. O objetivo foi parcialmente conquistado, segundo militares brasileiros, pois o policial haitiano não se sente seguro para atuar em determinadas áreas.
Dentro de uma das viaturas do batalhão, um adesivo ao lado esquerdo do motorista alerta: “Sua educação é a imagem do BRABAT”. A aclaração feita pelo capitão-de-mar-e-guerra Osmar da Cunha Penha talvez o justifique: “O militar está preparado para a guerra. Treinar esse uso gradual da força permite frear esse espírito guerreiro”, disse. “Isso é feito para todo um contexto que exige uma forma diferente de atuação. É algo que precisa ser exaustivamente tratado”.
A participação na Minustah é o principal envolvimento do Brasil em operações de manutenção da paz. Desde 1948, o País esteve em mais de 30 operações de manutenção da paz, tendo cedido um total de mais de 24 mil homens a elas. Além de operações no Congo, Angola, Moçambique, Libéria, Uganda, Sudão), integrou missões em El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Camboja, Timor-Leste, Chipre e Croácia). Cedeu tropas apenas a cinco operações: Suez (UNEF I), Angola (UNAVEM III), Moçambique (ONUMOZ), Timor-Leste (UNTAET/UNMISET) e Haiti (Minustah).
FONTE : Carta Capital