Ao explicar por que resolveu continuar no cargo, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro diz que a onda de assassinatos de PMs não representa uma crise das UPPs
José Mariano Beltrame continua a correr, “que nem cavalo velho”, porque sua cachaça, diz, é a atividade física. Não corre de traficante ou de miliciano. Gaúcho por origem, teimoso por natureza, com 20 ameaças de morte cadastradas, Beltrame se tornou, após oito anos de trabalho, o maior sobrevivente no comando da Segurança Pública do Rio de Janeiro.
A outra cachaça de Beltrame é a pacificação. As UPPs já conheceram dias melhores. Hoje, os bandidos atacam com fuzil as sedes, as patrulhinhas e os policiais. Mataram cinco PMs e um cabo do Exército nos últimos dias de novembro.
Na semana passada, Beltrame nomeou o tenente-coronel Luís Cláudio Laviano, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope), como novo coordenador das UPPs, e deu esta entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA – Há oito anos, o senhor dizia que a Justiça prejudicava seu trabalho. Ainda hoje?
José Mariano Beltrame – De certa forma, sim. Prendemos 41 no (Complexo do) Alemão, após seis meses de investigação. Voltaram para as ruas. Agora, temos de recapturá-los, quando poderíamos procurar outros 40 criminosos. Nove pessoas da Rocinha que deram tiros num domingo de praia foram soltas. No último feriadão no Rio, apreendemos 120 menores. Apareceram cinco pais e levaram os filhos. Os outros foram soltos. Possivelmente assaltarão na praia de novo. Não falo necessariamente em encarcerar menor. Digo a quem for assaltado e ficar sem relógio, cordão, celular e bolsa, que pense duas vezes antes de reclamar que a polícia não trabalha.
ÉPOCA – O senhor dizia que não havia hipótese de continuar como secretário de Segurança. Por que ficou?
Beltrame – Estava e estou muito cansado. Mas algumas coisas me fizeram permanecer. Acredito que preciso mudar a mentalidade sobre a segurança pública. Tirar o foco da mesmice do tiro, do cordão de ouro. Tenho receio de que alguém dê uma contraordem na pacificação. No momento em que se der uma marcha a ré, teremos um banho de sangue no Rio, porque as favelas, de forma ostensiva ou silenciosa, apoiam esse projeto. As UPPs têm de virar uma política de Estado, não do secretário.
ÉPOCA – O senhor é a favor da redução da maioridade penal?
Beltrame – Sim. A idade e o período de detenção deveriam depender da gravidade do crime que o menor cometeu. O jovem hoje pode votar, pode abrir uma empresa, tem muito mais liberdade, informação e maturidade que antigamente. Precisa sofrer as agruras da lei em cima do que fez.
ÉPOCA – As prisões não recuperam ninguém…
Beltrame – Concordo. Mas deixar na rua também não funciona. Hoje é assim: roubaram o cordão da madame! Polícia! Polícia! Cadê? E quando você vai checar aquele ladrão, menor ou maior de idade, já foi conduzido para a polícia e não ficou preso. Tem uma lei no Brasil, número 12.403. Essa lei diz o seguinte: crimes que, em tese, têm penas inferiores a quatro anos não levam à prisão. A pessoa responde em liberdade. Ótimo. Até aí, sem problemas.
Agora, a sociedade sabe que essa lei existe e apoia? Se você pegar alguém dirigindo um carro que consta como roubado às 4 horas da manhã, não adianta prender. Porque ele é receptador, e o crime de receptação é de três anos. Se ele tiver uma arma de calibre, sem porte, ainda pode sair por fiança.
ÉPOCA – O Rio é diferente dos outros Estados?
Beltrame – Fui com minha família ver a Árvore de Natal na Lagoa. Passaram órgãos responsáveis recolhendo carrocinhas de algodão-doce. Caminhei uma quadra em Ipanema e vi um barzinho cheio de mesas na calçada. Só a carrocinha é removida? E as mesas? O pau que dá em Chico, dá em Francisco. Em restaurantes, carros belíssimos dos clientes em fila dupla. No dia seguinte, o cara abraça a Lagoa em passeata pela paz. A visão dele de violência não inclui a desordem. No Rio, há a tolerância da sociedade e a leniência do Estado.
ÉPOCA – O governador Pezão prometeu R$ 600 milhões a policiais em reajustes salariais e também a contratação de novos 6 mil PMs, com o objetivo de chegar a 60 mil até 2018. O senhor está feliz?
Beltrame – Estou feliz. Mas dificilmente a gente terá uma segurança plena. Não dá para querer uma polícia sueca, a sociedade não é sueca. Agora, baixo salário não é desculpa para corrupção ou roubo. Já ganhei muito mal e nunca peguei nada de ninguém. O país inteiro vê que tem gente muito bem estudada, muito educada, muito rica, que não para de roubar.
ÉPOCA – Não adianta formar novos policiais, com aulas de filosofia, direitos humanos e ética? PMs são acusados de estuprar no Jacarezinho, somem com o Amarildo na Rocinha, assassinam um menino no Sumaré, revendem para o tráfico armas apreendidas, achacam comerciantes e moradores. Para completar, o sargento que dava aula de ética invadiu armado um depósito da prefeitura para retirar seu carro rebocado.
Beltrame – Desses casos, o único que envolve policiais novos é do Jacarezinho. Infelizmente, mesmo tendo sido expulsos da corporação, foram soltos na semana passada, “por falta de provas”. Preferia que continuassem presos. A UPP já envolve 10 mil policiais, atinge direta e indiretamente 2 milhões de pessoas e não podemos ser ingênuos. Há policiais que a gente não quer.
ÉPOCA – O senhor não fica frustrado?
Beltrame – A cada assinatura de expulsão de um policial, o sentimento é muito ruim. Mas não fico frustrado. Porque temos infinitos casos de sucesso. Historicamente, nunca se prendeu coronel, comandante. A gente fez isso. Foi difícil. Fizemos e previno que faremos mais. Sou a favor de processos justos, mas rápidos, porque a celeridade é a alma da punição para mim. A impunidade começa quando você liga para o 190 e não te atendem.
ÉPOCA – O tráfico e a milícia ainda comandam os territórios das comunidades, mesmo as pacificadas?
Beltrame – A UPP acabou com aqueles paióis de 500 quilos de droga que existiam antes. Não digo que isso não exista. Pode ser que daqui a pouco apareça. Mas não tem mais aquela história de mandar fechar a rua tal porque chegará o caminhão lá de Mato Grosso. Hoje, a venda da droga é mais picada. Claro que você vê pessoas armadas, mas não há mais aquela ostentação, gente abanando armas e saindo da Rocinha com braçadas de fuzil.
ÉPOCA – O senhor apoia a descriminalização da maconha?
Beltrame – Já dá para discutir. A descriminaiização da maconha tem de acontecer, embora seja tabu no Rio. Tenho um temor. O Estado cuidará do viciado? Ele é doente, tem o direito de se recuperar. É o SUS que fará isso? E como? Será vendido em carteira de cigarros, em potinho, como na Califórnia? Meu medo é que um oportunista erga a bandeira da legalização da maconha, aí libera e não se sabe como fazer.
ÉPOCA – Sobre os três PMs mortos no sábado, dia 29, o senhor diz que a ordem não partiu do bandido Elias Maluco, preso em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Acredita realmente que foi um acaso?
Beltrame – Sim. Eles foram abordados como pessoas comuns. Há três possibilidades nas mortes de PMs na rua. Ou eles reagem atirando, como policiais; ou são identificados por uma carteira, ou camiseta por baixo; ou, infelizmente, em alguns casos, é um acerto de contas, porque estavam envolvidos com o crime. A morte de um policial é um troféu para o marginal. Como foram vários casos num curto espaço de tempo, começa a gritaria como se fosse uma crise estrutural. Mas não é.
ÉPOCA – Cento e cinco policiais foram assassinados neste ano no Rio. Policiais civis e militares mataram 416 pessoas em serviço. Não são números de guerra civil?
Beltrame – Só foram mortos até agora neste ano 15 policiais em serviço. Os outros estavam de folga, à paisana. Diria que esses números são de um Estado com uma história de confronto. Era para estar melhor hoje, sim, se o sistema amplo de segurança funcionasse. Não adianta ter um policial com um fuzil numa escadaria na favela. A culpa não é da desigualdade social, que existe desde que o mundo é mundo. A falta de integração entre os vários setores e a impunidade ajudam a inflar essas estatísticas.
ÉPOCA – Qual é o papel das Forças Armadas? Pezão pediu a permanência na Maré. Há quem considere desvio de função.
Beltrame – As Forças Armadas vêm fazendo um trabalho excelente. O governo federal precisa mesmo entrar. Os Estados não têm condição de resolver isso. Essa é a grande verdade. Aceito a ajuda de todo mundo. A geografia do Rio complica ainda mais. O cabo do Exército Michel Mikami foi morto no dia 30 de novembro por um atirador em lugar estratégico na Maré. Ele estava de capacete e colete. Tomou um tiro no rosto. Mesmo com todos esses problemas, Pezão teve 74% de votos em áreas com UPP, onde ele seria eleito no primeiro turno. É uma aprovação impressionante.
FONTE: Revista Época